Odômetro da Alma



Eis-me aqui, absorto em meus pensamentos — talvez insignificantes — acelerando em uma pista dupla, quando fixo a visão no odômetro. O carro sinaliza que a velocidade é excessiva para quem já passou dos cinquenta anos. O ponteiro do marcador de gasolina está quebrado. Você não tem noção de quanta autonomia ainda resta.

Reduza drasticamente a força aplicada no acelerador. A pista à frente está afunilada, e um grande engarrafamento se formou. Não há retornos. A máquina começa a ratear. As peças, desgastadas pelo tempo, já não apresentam a mesma sintonia de um motor bem ajustado. Barulhos, trincas, vidros foscos dificultam a dirigibilidade.

Assim como você, o mundo mudou drasticamente nos últimos anos. Quase tudo o que foi aprendido na jornada acadêmica virou pó. Teorias antes consideradas cláusulas pétreas foram ridicularizadas e enterradas. Fizemos uma transição complicada — do analógico ao digital, da honra e respeito aos pais e aos mais velhos ao desprezo. Você se tornou invisível em casa e na sociedade. Um estorvo. Um móvel velho que precisa ser descartado.

É nesse trânsito lento que você aprende: este é um período deveras complicado. Inicia-se a temporada das despedidas — dos entes mais próximos, dos amigos de infância, dos irmãos acolhidos ao longo da vida, dos colegas de trabalho. É hora de sacudir as gavetas, abrir o guarda-roupa e começar a se desfazer das tralhas amealhadas durante uma vida. Objetos que só tinham valor sentimental para você — e que poderiam estar servindo a outras pessoas.

É hora do desapego. Nada é seu. Tudo é emprestado. Esse processo já foi repetido por antepassados que viveram as mesmas alegrias e tristezas que você — e que hoje não são sequer lembrados, ou ao menos objeto de agradecimento.

Siga seu caminho. Vá jogando as tralhas pelo percurso. Peça perdão às pessoas que você magoou — mesmo que não tenha sido sua intenção. Àquelas que você, talvez sem perceber, comentou com calúnia ou injúria. E perdoe. Quem te machucou, quem te caluniou, quem te injuriou. Tudo isso é tão pequeno. Não precisamos dessa carga.

Desnude-se dos sentimentos ruins: raiva, ira, ganância, inveja. Inunde-se de paz e amor. Lembre-se: você não sabe mais quanto combustível tem no tanque. Seu ponto final pode chegar a qualquer instante.

Deixe um legado de lealdade, amor e uma saudade boa no coração das pessoas da sua geração. Não se importe com a sua história — ela será contada conforme a vontade, a intenção, o credo e os valores de cada orador.

Siga até o combustível acabar ou o motor fundir as peças — tendo a certeza de que fez o melhor, dentro do seu melhor. Sem culpa. Sem acusar ninguém. Você viveu o que foi apresentado ao seu caminho. Essa foi a sua história — escrita no livro da sua vida, que logo ficará puído e será esquecido pelo tempo.

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